terça-feira, 12 de agosto de 2014

 Crônica

“DONA RITINHA”

         Eu tinha completado recentemente seis anos, quando Dona Ritinha me convidou para andar com ela, substituindo minha irmã de dez anos, já bem crescidinha. Ela combinou tudo com mamãe, e eu aceitei.
         Dona Ritinha era uma deficiente visual, devota de Santa Rita de Cássia, que, ao ficar totalmente cega, foi abandonada pelo marido. Vivia sozinha numa casa da Rua São Miguel, mas realizava todas as tarefas domésticas, sem enxergar nada. Só precisava de alguém que a conduzisse às casas para pedir esmolas. Eu fui o escolhido.
         Saíamos um dia, no meio da semana, visitando alguns pontos comerciais e Rua Grande (hoje Deputado Furtado Leite), no Centro da cidade, batendo às portas das residências: “Uma esmolinha pelo amor de Deus!”.
          Eu a conduzia pela mão cuidadosamente, avisando as descidas e as subidas, desviando dos buracos, evitando tropeços e acidentes. Também carregava os gêneros doados em sacolas. O dinheiro, ela colocava nos bolsos do vestido: um, para moedas e o outro, para as cédulas. Nosso ponto de parada era a casa de Dona Lourdes Izidório, sua comadre. Lá, sempre saía um pão com manteiga, um café com leite e uma boa conversa.
         Ao chegar a casa, Dona Ritinha me dava uma ajuda em dinheiro e outra em alimentos.
         O que eu achava interessante era ela reconhecer as moedas pelo tamanho e pelas saliências impressas, bem como por particularidades mínimas no dorso das “pratas”, observações que para as pessoas sãs, passavam despercebidas. Ela reconhecia as cédulas pelo tamanho e pela textura.
         Aos sábados bem cedinho, a gente ia ao açougue pedir esmolas aos marchantes. Uns davam carne e toucinho; outros, pelanca, osso, peia, nervo... Mas tudo era bem-vindo. Quando retornávamos, ela me dava parte das “misturas”, que eu ia deixar em casa para melhorar o tempero do almoço. Em seguida, voltava, para levá-la até a “braúna”, uma imensa e frondosa árvore que cresceu ao longo das décadas no caminho de Inhumas. Lá, ela ficava sentada num tamborete com uma “baciazinha” nas mãos, pedindo esmolas aos comerciantes, vendedores e transeuntes que iam para Feira em Santana. De alguns deles, ela se oferecia para ler a mão, baseada nos traços nela existentes.
         Eu ficava brincando ali por perto. Subia na porteira do curral que dava para as terras de Seu Carrim e Seu Valter, depois pulava pendurado nos galhos da Braúna. Procurava “pedras de peixe”, ninhos de passarinho, fazia esculturas com canos de milho e galhos de “bamburrá”, modelava o massapé vermelho em tempo de terra molhada, e fazia muitas imagens de santos.
         Por volta das três para as quatro horas da tarde, retornávamos. Independentemente da feira, a minha gratificação era certa: sempre recebia alguma coisa, o que ajudava muito nas nossas despesas.
         Chegando a casa, repassava o valor aos meus pais, que me davam uma parte para gastar com material escolar e com “besteiras” (bombom, pirulito, bolacha, picolé, etc.).
         Tudo que eu ganhava de Dona Ritinha era uma grande contribuição para família, que vivia apenas do que saldava com as roças.
         Com Dona Ritinha aprendi muitas coisas para a vida. Ela me ensinou valores como: o respeito, a solidariedade, o compromisso, a devoção, o otimismo, a lealdade... Deu-me sábios e valiosos conselhos. Ensinou-me a rezar pelo meu Anjo da Guarda e pelo Anjo da Guarda do meu bom amigo. Foi com ela que aprendi esta oração que até hoje rezo antes de me deitar:
“Meu Jesus crucificado
Filho da Virgem Maria
Me guardai hoje, nessa noite
E amanhã pelo dia
Nem meu corpo seja preso
Nem minha alma perdida
Nem meu sangue derramado
Pelas mãos dos inimigos
Pois com Deus eu me deito
Com Deus eu me levanto
Com a graça de Deus
E do Divino Espírito Santo,
Amém.”

Raimundo Sandro Cidrão - Professor 


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